terça-feira, 12 de outubro de 2010

Povo do Carrãozinho




Jardim Vila Carrão, carinhosamente chamado de carrãozinho pelos seus ilustríssimos moradores, é um excêntrico bairro da zona loste de São Paulo. Sua excentricidade não se dá pela ótima localização que não possui, tão pouco pelos palacetes belíssimos, casas bonitas e ricos jardins que também não existe. A localidade é excêntrica pelas suas ricas peculiaridades geográfica e principalmente pela presença de seus nobres moradores.
O nome carrãozinho faz alusão a João da Silva Carrão, o "Conselheiro Carrão”, um advogado, jornalista e ex-presidente da Província de São Paulo. Sei desta informação apenas por ter sido agraciado com o Título de Cidadão Honorário do Carrãozinho, visto que há mais de 25 anos estou inserido neste buraco.
Quando menciono “buraco” não estou a menosprezar este agraciado vilarejo, e sim informar mais uma particularidade. Quem vem de bairros vizinhos percebe que o carrãozinho situa-se em um buraco, uma espécie de cratera.
Sim, ilustríssimo leitor, é isto mesmo que você está pensando. Fazemos parte de um raro fenômeno que acontecera a vinte milhões de anos. As irmãs Souza (nativas da cratera) que sempre reclamaram dos barulhos dos “fogos de artifícios” lançados pela meninada da rua (meninos de 20 a 60 anos) não têm idéia que o fenômeno acontecido outrora é comparado à potência de dez bombas atômicas lançadas ao mesmo tempo em um único lugar. Nosso querido bairro surgiu com a queda de um meteorito em nossa crosta terrestre. Os moradores mais religiosos e poéticos afirmam que tratara de uma profecia, ou seja, o pichilinga, o mofento ou belzebu caiu justamente no Carrãozinho... Mas o orgulho levou Lúcifer a se rebelar contra Deus. Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações!(Isaías 14:12)
A queda desse corpo celeste elevou a temperatura em torno de cinco mil graus Celsius e abriu um aconchegante buraco que viríamos a chamar “Jardim Vila Carrãozinho”. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) Fig.(1) ainda trabalham para comprovar os dados científicos e chegar, inclusive, à idade correta desse patrimônio natural paulistano.
Durante milhares de anos, o Carrãozinho ficou entregue à própria sorte e acabou sofrendo uma ocupação desordenada, o contrário do que ocorreu em países como Estados Unidos e Alemanha. Lá também há crateras, que são pontos turísticos. Os especialistas acreditam que o carrãozinho depois de ter sua origem comprovada também tem potencial para se transformar em ponto turístico sustentável e gerar desenvolvimento econômico.
Nosso buraco tem um diâmetro de quase 5,2 quilômetros. A profundidade chega a cerca de 150 metros. São quase 20 mil alegres habitações com luzes e cores que irradiam uma aura de doçura e de simplicidade na comunidade.
São mais de setenta mil agraciados que compõe o que as irmãs Souza chamam de “povo do carrãozinho”. Estes moradores consideram o carrãozinho o melhor lugar para se viver, afirma Maria Bastarda, do levantamento do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Associação “É Pequeno, Mas Vai Crescer”.
O nobre bairro será no ano que vem homenageado pela escola de samba “Unidos da Vila São Vicente”, que levará o lugarejo para o Anhembi. A escola da Vila São Vicente, na zona norte da capital, foi rebaixada do Grupo de Acesso “B” para o Grupo de Acesso “C”, e acredita que poderá retornar para a “terceira divisão” do carnaval em 2011. Por esta e outras, o Carrãozinho é o bairro mais feio e perigoso que você vai aprender a amar. Segundo Dona Adelicia de Carvalho, o Carrãozinho é como um pote de mel, você nunca conseguirá deixá-lo.
De fato, verificamos que existem pessoas que se mudaram do bairro, mas nunca conseguiram desvincular-se por completo, isto se dá pelas opções do agradável bairro. A famosa “Rua Vinte”, por exemplo, considerada o centro comercial do bairro, já foi comparada a Rua Oscar Freire, esta menos badalada, é claro. Segundo o morador Constancio Nascimento, A Rua Vinte é o ponto de encontro de gente antenada e de fãs da moda, gastronomia e arte. Enfim esta é a nossa “Oscar Freire”. Fala pausadamente entre um gole de cerveja e uma beliscada na porção de calabresa.
Os jornais locais destacam a rua como ponto de encontro de boêmios, músicos, escritores, à procura de restaurantes sofisticados e casas noturnas da região, porém todos acabam aderindo ao “Papo de Cachaça”, um boteco requintado onde é possível tomar uma Skoll por apenas R$ 2,80, ser levado pra casa (caso necessite) pelo “trans-bêbado” fig.(2) (moderno sistema de entrega a domicilio) e ser atendido por lindas garotas.
Além do atendimento diferenciado, nesta sofisticada rua corre-se o risco de apreciar a famosa “corrida de suínos”, haja vista que tem pequenos matadouros clandestinos na região. Faça as suas apostas.

Fig.(2)
Para Bruno Novais, freqüentador assíduo do boteco Papo de Cachaça, o único fator negativo da região é o acúmulo de fumaça provocada pelo pólo petroquímico da cidade vizinha (Mauá) que altera a atmosfera da cratera carrãozinhense e provoca estranhos comportamentos em seus moradores. Segundo o boêmio, as pessoas ficam “despirocadas”. A indústria emite partículas, gases e radiações que afetam a comunidade local prejudicando a saúde das pessoas e das plantas da redondeza. Recentemente a OMS (Organização Mundial de Saúde) revelou que o benzeno, substância encontrada na atmosfera carrãozinhese, é responsável pelo comportamento excêntrico e “despirocado” dos moradores. Um mero detalhe que não afeta a essência dos moradores.
Nosso querido bairro cosmopolita abriga todas as tribos e estilos, sendo assim é possível encontrar pessoas de todas as regiões do Brasil, exceto paulistano. Mesmo com estas ricas características os moradores afirmam que o lugarejo é muito feio. Ao perguntar aos moradores o porquê deles acharem muito feio nosso bairro percebi que as atitudes dos moradores contribuem para este fato. Dona Belarminda, por exemplo, apelidou a minha rua carinhosamente como “Rua da Bosta”, visto que os senhores cachorros não levam a bosta dos seus donos para casa.
As calçadas são esburacadas, os lixos escancarados, as obras inacabadas e o esgoto a céu aberto. A prefeitura raramente faz benfeitorias na região. Tudo é provisório, em construção, nunca acaba. E o “povo do carrãozinho” parece não se incomodar com esse “deixa pra depois”. Depois reclamam que o bairro é feio.
Os moradores reclamam que os comércios são horrorosos, as ruas não têm farol, os motoristas não respeitam as leis de trânsito. Segundo uma moradora (não quis se identificar com medo de vir a sofrer qualquer tipo de ameaça). Os jovens são mal educados e escutam músicas horrorosas em alta intensidade até altas horas da noite. Alem destes obstáculos as opções culturais na comunidade ficam restritas a igreja e boteco. Você vai à igreja ou vai ao boteco. Nas duas opções o cidadão terá que abrir a carteira.
Ao relatar tantas características positivas e negativas desta localidade, fica evidente que se trata de um bairro periférico como outro qualquer. Seria injustiça e preconceito afirmar que estas mazelas se restringem apenas ao “povo do Carrãozinho”.
Neste artigo, a Dona Belarminda, o Sr. Constancio Nascimento, entre outros, são personagens fictícios, e as características extravagantes do bairro nada mais é do que fruto da ociosidade e extravagância do escritor que apenas quer homenagear seu humilde bairro, porém o “povo do Carrãozinho” existe e representa todas as periferias deste país. É gente que luta, trabalha e paga impostos igual aos moradores dos bairros nobres.
Uma pesquisa realizada pela ONG Movimento Nossa São Paulo com dados oficiais, fornecidos pela fornecido pela Prefeitura de São Paulo, revela que enquanto bairros de classe média têm serviços de saúde, educação e cultura semelhantes aos de países desenvolvidos, bairros da periferia da capital apresentam total carência de serviços essenciais. O estudo conseguiu detectar que o volume de recursos que chega aos bairros ricos é em média quatro vezes maior que chega aos bairros periféricos. Além da desigualdade de investimentos, a pesquisa revelou a desvantagem dos bairros de periferia com relação a acesso a saúde, educação, esporte, cultura e lazer.
Sem investimento estes bairros abandonados por seus gestores, assim como o “Carrãozinho”, dificilmente sairão do buraco, e isto, infelizmente, não é ficção.